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O “Dreyfus português”

O “Dreyfus português”

No final do século XIX, o capitão do exército francês Alfred Dreyfus foi condenado judicialmente por traição à pátria, com base num documento anónimo avariado que os poderes da época usaram em desfavor do seu alvo. Destituído do seu posto, despojado da sua farda e remetido à colónia penal, o réu viu o caso ser revisto mais tarde, com a afirmação da sua inocência por parte do mais alto tribunal de apelo em França, uma decisão que teve o condão de refrear o ódio antijudaico que a condenação anterior havia desencadeado entre a população. Todavia, cabe lembrar que aquela revisão muito custou a desencadear, pois ninguém queria mexer na “verdade” previamente estabelecida como se fosse sagrada. Surgiu um cisne negro. Ninguém contava com ele. Émile Zola, no seu corajoso “Eu acuso!”, desfez as apodrecidas elites locais de ponta a ponta. Era só um homem, mas foi quanto bastou. Foi ele que travou aquela espécie de Kristallnacht que se desencadeou contra a comunidade judaica francesa. E ainda hoje a sua coragem gera efeitos. “A cada dia 12 de julho a partir de 2026, haverá uma cerimônia em homenagem a Dreyfus, como reconhecimento da vitória da justiça e da verdade contra o ódio e o antissemitismo”, afirmou Emannuel Macron há poucas semanas.

O caso teria pouco a ver com Portugal, não fosse a coincidência de, por terras lusas, um outro capitão, contemporâneo de Alfred, ter sido arredado do seu posto num caso fabricado com denúncias anónimas que igualmente lhe imputavam um crime carregado de censurabilidade social: a homossexualidade. Fora gaseado na Flandres e, regressado das trincheiras, converteu-se ao judaísmo e coube-lhe, com a sua força, crença e cultura, fundar a Comunidade Judaica do Porto, obter o apoio da diáspora sefardita de origem portuguesa e erguer a maior sinagoga da Península Ibérica. A vontade de condenar o capitão de infantaria Arthur Barros Basto foi tanta que, em 12 de junho de 1937, decretada a sua absolvição em relação ao comportamento indiciado, outra conduta de cariz bem diferente – a circuncisão dos seus alunos –, foi usada para decretar que o réu “não possuía capacidade moral para prestígio da sua função e decoro da sua farda”. Ninguém defendeu o capitão, nenhum Zola apareceu, nem individual nem coletivamente.

O capitão Arthur Barros Basto fotografado com a sua mulher, Lea Azancot

Enquanto em França, o capitão Dreyfus cedo foi reintegrado no exército, em Portugal o capitão Barros Basto exclamou até ao leito da morte que um dia alguém lhe faria justiça. Caiu pela última vez em 1961 e, após a sua partida do mundo dos vivos, muitas tentativas foram encetadas no sentido da sua reintegração simbólica. Foi necessário esperar até 2012 para que o parlamento recomendasse ao governo que operasse tal reintegração. O caso parecia bem encaminhado quando, no ano seguinte, o Chefe do Estado Maior do Exército determinou que Barros Basto poderia ser reintegrado no posto de coronel, dado que teria obtido esse posto em 1945 caso não houvesse sido separado do serviço militar. Nada foi concretizado. Até hoje.

Uma visão fílmica da história e do julgamento do capitão Barros Basto foi produzida pela Comunidade Judaica do Porto há poucos anos. O filme tomou o nome de “Sefarad” e encontra-se disponível gratuitamente no YouTube. Trezentos anos depois da fuga aterrorizada dos últimos cristãos-novos portuenses, a comunidade judaica da cidade renasceu oficialmente. Era constituída por uma dezena de famílias da Europa central e de Leste e presidida pelo capitão. Seria suposto que, em Portugal, as elites ficassem honradas com a construção de uma das mais portentosas sinagogas da Europa e que representasse um orgulho para a pátria a comunidade ser dirigida por um português. Aconteceu o oposto. O militar viu-se acusado nos jornais do mainstream de ser um mero “panteísta” e de dirigir uma organização anti-nacional que dava abrigo a “bolcheviques”, quando na verdade os seus correligionários eram refugiados russos, ucranianos, lituanos, bielorrussos, polacos e húngaros que haviam tomado o caminho do Porto em busca de um lugar seguro. De nada valeu ao capitão ser um literato e escritor judeu que publicou obras sobre a filosofia, a religião, a cultura e a história dos judeus do Porto e do cofundador da nação, Yaish ben Yahia. O que realmente perturbou o Poder foi o facto de a organização ser independente e cedo foi engendrado um esquema para tirar partido de denúncias anónimas de um pequeno grupo de marginais que fazia parte da camada mais baixa e trauliteira da sociedade, com o objetivo de perseguir Barros Basto e, por esta via, destruir a comunidade, pois todos sabiam de antemão que, caído o capitão, tudo descambaria, dado que os demais judeus da comunidade, todos estrangeiros, não tinham as qualidades, a cultura e a coragem do seu líder.

Vendido o capitão nos jornais como sendo um mero “panteísta” que nada tinha a ver com a comunidade judaica, silenciada a obra judaica por ele produzida com tanto conhecimento e vontade, desprezado o majestoso templo que havia sido erguido na rua de Guerra Junqueiro, esquecidos os apoios que o militar mereceu dos Rothschild de França, dos “Rothschild da Ásia” (a família Kadoorie) e de todos os demais vultos que contribuíram para que aquele empreendimento se tornasse possível, foi fácil fazer o “julgamento” e prolatar uma “sentença condenatória”. Assim nasceu o internacionalmente conhecido caso “Dreyfus português” sobre o qual o mundo ainda se interroga. “Apenas investigamos Barros Basto, não a comunidade”, bradava o ministro Santos Costa na década de 1930, quando com uso de cartas anónimas de marginais havia participado na montagem do caso que atirou uma comunidade judaica organizada para um estado de coma que se viria a estender por muitas décadas.

A chegada do novo século não poderia ser mais reveladora a respeito do estado calamitoso em que a perseguição a Barros Basto deixou a instituição. Não havia vida religiosa, nem produção cultural, nem esperança. Porém, a vida judaica sempre se regenera, com os vivos a seguirem a filosofia dos mortos, que são trazidos de volta à vida — em memória, em identidade, em força e prosperidade. A partir de 2012, a neta do capitão, Isabel Barros Lopes, e os membros mais legítimos da comunidade, deitaram mãos à obra. Em poucos meses, o prédio da sinagoga foi reabilitado por inteiro e a comunidade começou a receber grandes eventos internacionais. Em 2014, a cidade assistiu à inauguração de um hotel kosher, com restaurante, logrando atrair o turismo judaico, a que se somou a construção de um pequeno museu. O trabalho de promoção da religião e da cultura judaicas amplificou-se ano após ano.

Uma escritora judia que já visitou comunidades de cinquenta e cinco países exprimiu por escrito o que sentiu após uma cerimónia de Yom Kipur no Porto, animada por membros de trinta nações e muitos jovens. “Escrevi a vários amigos e familiares para lhes contar o quanto estava profundamente comovida. Acho que nunca ouvi orações e cantos tão apaixonados antes em uma sinagoga. Não foi apenas o poder das vozes orando em uníssono que me comoveu tão profundamente, foi também o simbolismo de tantos judeus reunidos numa sinagoga em um país fortemente impactado pela Inquisição.”

Ao mesmo tempo, a comunidade tornou-se uma potência cultural – a mais completa da Europa neste feudo –, e espiritual, conglomerando tradições, culturas e artes tão distintas como a religião, o cinema, a pintura, a música, a literatura, a videografia, a gastronomia e a promoção da história judaica. Imagina-se o sentimento da neta do capitão Barros Basto, que em primeira linha de missão reabilitara o avô, a sua sinagoga, a sua comunidade, a sua obra, a sua produção cultural, o seu sonho. No mundo judaico, as pessoas não aceitam envelhecer e descobrir que não criaram nada e que apenas repetiram uma qualquer rotina penosa.

No entanto, também as dores do passado vinham a caminho, pois as cartas anónimas caluniosas que a própria Inquisição proibiu em 1774 tinham vida longa em Portugal. O avô fora alvo das mesmas na década de 1930 e Isabel preparava-se para passar pelo mesmo. Não, Isabel Barros Lopes não era agora uma mera “panteísta”, mas sim – de acordo com as cartas – uma “não-judia filha de mãe judia” [e possa haver alguém no mundo que compreenda isto!]. Não, a comunidade não estava ligada a russos bolcheviques, mas sim a russos oligarcas que supostamente até incluíam um francês nascido de pais marroquinos e ligado ao SIRESP. Não, o crime da moda já não era a homossexualidade, mas sim uma tal de “corrupção”. Assim se incomodou Isabel num belo dia às 7 da madrugada, para verificar se porventura alguns sacos de dinheiro possuíria camufladamente na sua residência. Nada de novo em termos de antissemitismo. Nada de novo em termos familiares. A sua avó Lea Azancot há muito havia aturado agressões policiais empurradas pelo sistema e, para os filhos não ficarem confusos, dizia-lhes que “aqueles senhores eram uns amigos do pai que tinham ido lá buscar uns documentos que afinal não existiam”.

Num tempo em que o anti-judaísmo e o anti-israelismo são dois gémeos soviéticos, lembrar o “Dreyfus português” não é lembrar um capitão que ergueu a bandeira da República na Câmara Municipal do Porto ou que obteve inúmeras condecorações depois de ter sido gaseado nas trincheiras da Flandres, mas sim recordar um arquétipo antijudaico que, ancorado em escritos anónimos caluniosos, teve lugar em todas as épocas e latitudes.

observador

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